A cantora italiana Mafalda Minnozzi faz show nesta sexta (23) em São Paulo para comemorar seus 20 anos no Brasil.
Ou melhor, numa ponte aérea constante entre Brasil e Itália. "Já fiz a viagem de ida e volta umas 80 vezes", conta Mafalda à Folha. "Durante um tempo, gastava tudo que ganhava nisso." Tanta dedicação á missão de mostrar uma música italiana de qualidade do outro lado do Atlântico nasceu na primeira visita ao Brasil, para uma temporada no Rio, quando foi incentivada por Chico César e Renata Russo. Ela intensificou as visitas e as coisas começaram a acontecer. Emplacou músicas em novelas e colaborou com grande parcela da melhor MPB, como Martinho da Vila e Milton Nascimento. O show no Auditório Ibirapuera comprova isso com participações de Blubell, Carlos Careqa, Dani Black, Fabiana Cozza, Mario Manga e Simoninha. Mas a maior parte do espetáculo exibirá o duo que Mafalda mantém há anos com o guitarrista americano Paul Ricci. A dupla segue refinando o estilo peculiar de Mafalda: resgatar música italiana de várias épocas, envoltas em uma elegante roupagem de jazz que também reflete sua predileção por bossa nova. "Não vou cantar nenhuma música de novela, talvez para a decepção de muitas pessoas. Sem muita saudade daquilo que já foi, adoro viver meu tempo", diz Mafalda, em português fluente com simpático sotaque.
Folha Por que você convidou outros artistas para uma comemoração tão pessoal?
Folha Por que você convidou outros artistas para uma comemoração tão pessoal?
Mafalda Minnozzi Estou cheia de amigos, de colaborações preciosas, que
consegui durante esses anos de andanças. Viajando tanto nesse mundo, a
gente vê que sozinho você não é nada. Se não junta as forças, não acontece.
As colaborações apareceram desde sua primeira vinda ao Brasil?
Consegui me relacionar com um mundo musical de grande talento, algo
inacreditável. Tive um pouco de medo no começo, mas depois vi que
encontrava carinho com todos que eu conhecia. Martinho da Vila, Milton
Nascimento e artistas menores em exposição midiática, como Guinga e
tantos.
Chico Cesar foi o primeiro que me abriu para esse mundo. Chico disse
"Mafalda, continue andando com toda essa beleza que a música italiana
carrega, de Sergio Endrigo, Luigi Tenco, que você sempre vai ter as portas
abertas". E foi assim mesmo. Chico me falou que a música preferida dele era
"Non ho l'eta", de Gigliola Cinquetti. Uma canção dessas, não é que seja
preciosa pelo cancioneiro italiano, mas pelas lembranças que ela traz. Ele se
lembra do carro de cinema que passava no sertão em que ele morava quando
garoto e que anunciava Gigliola Cinquetti no filme "Dio, Come Ti Amo". Tem
gerações no Brasil que cresceram com essas músicas.
Antes de vir para o Brasil, o que sabia sobre o país?
Quando eu entrei na baía de Guanabara pela primeira vez na minha vida,
tinha uma visão do Brasil muito ligada à bossa nova, meus ídolos, a partir do
João Gilberto, Caetano Veloso, com aquela voz magnífica, Vinicius de Moraes.
A gente traduzia as poesias de Vinicius de Moraes na escola. Na parte da
tarde, você podia trazer algum texto do qual gostasse para estudar. Eu levava
Salvatore Quasimodo, um dos poetas favoritos, Pirandello, que me
acompanhou a vida inteira, Dario Fo e Vinicius. Seus textos eram difíceis para
traduzir ao italiano, eram complexos.
Já falava português nessa primeira visita?
Cheguei em 1996. Não falava nada de português. Depois de um ano eu
conseguia conversar, mas ainda estou estudando. Quando eu percebi que o
Brasil estava no meu destino, quis aprender esse idioma, comecei a ler muito,
lia todos os jornais
Como foi seu encontro com Renato Russo, poucos meses antes de
sua morte?
O Renato Russo não estava muito bem. Eu o conheci em um show da Marisa
Monte, na fila do camarim. Ele me reconheceu, porque eu havia feito o
"Faustão" no domingo anterior, e me disse que tinha gravado um disco em
italiano, "Equilíbrio Distante". Depois ele me presenteou com esse disco,
autografado, que perdi recentemente porque entrou água no meu
apartamento, perdi coisas preciosas do meu acervo. Ele me falou de sua
ligação com a música italiana. Isso me impressionou muito. Eu estava há 20
dias no Brasil e prestes a ir embora. E fiquei. Então Renato foi fundamental
na minha vida. Comecei a cantar algumas músicas dele. "La Forza della Vita"
foi uma que eu abracei mesmo.
As visitas se tornaram constantes, não?
Eu continuei trazendo músicas de lá para cá. Já fiz mais de 80 vezes, ida e
volta, a viagem da Itália ao Brasil. Todo dinheiro que ganhava eu gastava
assim. Fui contratada por uma casa de shows no Rio, na Lagoa, chamada
Paradiso. Cheguei ao Brasil para cantar todas as noites, de meianoite até uma
e meia da manhã, um repertório italiano. Mas eles queriam sempre as
mesmas músicas, algumas boas, outras não. Todo mundo cantava junto, era
extremamente louco. Ainda não havia internet, estava começando a chegar.
Então eu imaginava o Brasil como algo muito diferente, não poderia imaginar
que existia uma colônia italiana tão forte.
Brasil para mim era Jorge Amado, do qual eu li quase tudo, a Bahia e os
morros do Rio. A primeira coisa que eu fiz no Brasil foi subir no morro, fui na
Mangueira, adotei algumas crianças lá, à distância, um trabalho filantrópico.
Começou ali meu envolvimento forte com o país. Mas não poderia imaginar
que encontraria tantos italianos e filhos ou netos de italianos. Os donos de
bancas de jornais, os taxistas, eram muitos. Pensei se poderia fazer alguma
coisa para dar continuidade ao laço que existe entre esses dois povos. Então
misturava o repertório no Paradiso, agradava um pouco a mim, um pouco à
plateia. Colocava músicas de um Ivano Fossatt, um Sergio Endrigo meio
diferente, fazia algumas versões do Chico Buarque em italiano. Algumas
agradavam, outras afastavam parte do público, foi um processo muito lento.
O sucesso demorou?
Algumas músicas minhas entraram em novelas da Globo. Muitos artistas
cruzaram meu caminho. Eu ajudei muitos artistas a cantar em italiano.
Leonardo e Zezé di Camargo foram dois deles, para que eles cantassem em
italiano numa trilha de novela. Cuidava da pronúncia, mas também mostrava
um modo de cantar menos melodramático do que aquele que costuma ser
associado á canção italiana, mostrava como poderiam ser mais simples.
O verdadeiro canto italiano é de Roberto Murolo, um canto popular onde a
voz é sutil, delicada. Não é aquilo melodramático, de Puccini, Verdi. Temos
hoje uma expressão muito forte desse estilo vigoroso no mundo inteiro, com
Il Volo, Andrea Boccelli, mas temos Enrico Caruso, Giuseppe di Stefano, Mario Lanza, que são figuras que cantam com timbres ecléticos. No entanto, muita gente quando vai cantar como eles já vai para o fortíssimo.
É como a cultura brasileira no resto do mundo, que passa ser uma coisa
extremamente tropical, colorida, agitada, corporal, sensual. É tudo isso, mas
não é só isso. Músicas como "Dindi", de Tom Jobim, ou "Inútil Paisagem" são
fundamentais para que eu me lembre de Toninho Horta, Fabiana Cozza, Leila
Pinheiro. São exemplos de como pode ser eclético, até Cartola.
Como será o show no Auditório Ibirapuera?
Não vou cantar nenhuma música de novela, talvez para a decepção de muitas
pessoas. Claro que devo muito a "Esperanza", essa novela colocou o Brasil
todo cantando comigo em 2002, mas eu tenho de fazer algo que seja coerente
com o que faço hoje. Sem muita saudade daquilo que já foi, adoro viver meu
tempo. Gosto de nascer de novo a cada dia. Tenho que dialogar com a minha
linguagem atual, que é jazz, é livre como nunca fui antes, algo introspectivo
mas comunicativo. Mas "Dio, Come Ti Amo" pode entrar, com o instrumental
talentoso de Mario Manga.
E, como nos discos, cantará em italiano, português, inglês e
francês?
Sim. Às vezes o idioma nos limita. Acho que vai chegar uma hora em que vou
me sentir mais João Bosco, cantando com sons guturais, algo que não seja a
palavra. Um idioma, uma só bandeira, para mim é pouco. Em agosto, eu e
Paul Ricci nos apresentamos no Birdland [casa de jazz badalada de Nova
York]. Uma cantora como eu estar ali é muito estranho. E não é que
marcaram de novo para fevereiro? O público pediu minha volta. Com o
mesmo repertório, carrego para todos os ligares o Brasil, o jazz, o improviso.
Vou cantar no show com Simoninha uma música do pai dele que foi sucesso
enorme na Itália. No Natal, eu me apresentei com Milton Nascimento em
Petrópolis, e quando eu comecei a cantar "Travessia" em italiano, Milton me
deu um sorriso que foi de uma riqueza tão grande que justifica todo esse
caminho que percorri.
Fonte Oficial Folha de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário