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terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Aquele terremoto me fez ver que bens materiais são ilusórios

O sorriso intermitente e as cores por todo o rosto deixaram claro que Mafalda Minnozzi é uma mulher de superações. Em outubro deste ano, um terremoto destruiu a casa onde morava, em um vilarejo na Itália. Durante a vida, abortos, assaltos, a mudança rotineira: divide o lar-doce-lar entre São Paulo, Roma e Nova York; divide o timbre agudo entre bossa-nova, jazz e pop. Italiana de Pavia, Mafalda gesticula, abraça e beija. Fala alto, ri e reflete: “Ser artista é tristeza, e não alegria”.
Em entrevista ao R7, um dos maiores nomes da música italiana falou sobre lições de vida, altos e baixos e sobre a paixão pela cena independente ao redor do mundo. Confira o bate-papo na íntegra!
Fonte Oficial Portal R7


R7 Pop: O que você sentiu após ter perdido sua casa, naquele terremoto?
Mafalda Minnozzi: Senti, à época, um grande senso de abandono, como se ninguém tivesse se preocupado comigo. A gente sempre responsabiliza as pessoas por algo que nos acontece, seja o governo, o síndico do prédio ou até o zelador. Eu senti um abandono grande, porque pensava: “Caramba, paguei uma fortuna nessa casa. Como ela pode explodir dessa forma?”. No começo, é uma profunda perda, mas uma perda de algo que eu provavelmente nunca tive. Era uma simulação de algo que eu tinha, era ilusório: uma casa, um lar, aqueles móveis bonitos... Eu senti uma perda assim quando fui assaltada aqui em São Paulo: entraram na minha casa e me tiraram tudo. Era a casa com a qual eu tinha sonhado a vida toda: lá, eu tinha uma horta, plantava manjericão...
R7 Pop: Depois do incidente, o que mudou em você como pessoa?
Mafalda Minnozzi: O fenômeno natural vem, mas ele tem todo o direito de vir. Somos nós que somos idiotas, somos idiotas porque minha mãe e eu gastamos toda a nossa vida, todo o nosso dinheiro em uma casa que todos achavam linda, achavam que parecia casa de boneca. Mas cadê o corpo daquela casa para poder sustentar eventualmente um tremor? A terra treme há eras, há séculos. Nós, seres humanos, somos tão frágeis, tão estúpidos perto da natureza, que não temos a sensibilidade de perceber que a natureza é linda, mesmo trazendo consequências às pessoas. Nós precisamos valorizar o agora, os momentos, porque eles podem acabar: valorizar momentos e não bens materiais. Hoje, a gente corre feito maluco, os pais nem olham nos olhos dos filhos. Há crianças dentro de casa que não sabem nem como expressar sentimentos, não sabem abraçar, amar. Eu, que sou artista tento fazer uma música que legal que entre no coração das pessoas, sinto que mendigo a atenção das pessoas.
R7 Pop: Hoje, você não tem uma residência fixa. Como tem sido sua rotina pelo mundo?
Mafalda Minnozzi: Eu tenho um público muito querido aqui no Brasil. Músicas minhas fizeram parte das trilhas sonoras de algumas novelas como Terra Nostra e Esperança, além do filme SOS Mulheres Ao Mar. Agora moro um pouco em São Paulo, um pouco em Nova York e um pouco em Roma. São cidades incríveis, São Paulo é uma cidade cheia de contradições, mas linda. Roma é uma cidade morta. Está na minha lembrança porque foi a primeira cidade italiana que conheci ao sair de Pavia, onde nasci. Cheguei lá aos 18 anos, fiz curso de teatro por quatro anos, aula de dança, cursos de canto, etc. Depois, parti para o mundo. Mas Roma é uma cidade morta, que tem um fracasso sociopolítico; é uma cidade em grande decadência, suja, abandonada, que só vai só em uma direção: o colapso cultural. Não faz mais um trabalho de legislação boa. A prefeita nova, Virgínia Raggi, está tentando inventar algo que vai demorar anos para ser concretizado. Roma era incrível nos anos 1960: música, cinema, fotografia... Mas agora ficam as lembranças. Nova York é uma cidade grande, bonita: mas se você não tem dinheiro por lá, você não faz nada. Então nenhuma delas me encantam tanto como São Paulo.
R7 Pop: O que você mais gosta de fazer aqui no Brasil?
Mafalda Minnozzi: Adoro fazer tudo em casa: receber amigos, ensaiar com meus músicos, adoro me enturmar, conhecer gente nova; levar essa galera em casa e cozinhar arroz e feijão junto com risoto. Brigar dizendo que risoto é mais gostoso que arroz e feijão (risos). O baixista Rubens Farias é da Bahia, e sempre que viajamos para a Europa, ele leva farinha. No aeroporto é sempre um tormento, porque acham que é droga (risos). É sensacional.
R7 Pop: Como é seu dia-a-dia em busca de shows?
Mafalda Minnozzi: Normalmente, entro em uma casa de shows e pergunto quanto o dono me ofereceria para tocar. Se o cachê for suficiente para pagar meus músicos, eu toco. Se tiver comida e me descolarem um lugar para dormir básico e tranquilo, eu vou. Em Nova York, toquei em Birdland, uma das casas de jazz mais famosas do mundo. E foi a realização de um sonho. Sabe como entrei lá? Entreguei o disco em um dia e, quando voltei, o cara ainda não tinha ouvido o material. Pedi que ele ouvisse: “Tem coisas boas, escuta aí, me dá uma chance”. Ele escutou, e no dia seguinte me ligou. O público gostou bastante e sempre pede que eu volte, isso é legal. O problema é meu nome: normalmente, as pessoas não conseguem pronunciar. Se eu soubesse, teria mudado de nome quando completei 18 anos (risos).
R7 Pop: Para você, o que tem movido as novas gerações?
Mafalda Minnozzi: O espetáculo e a valorização extrema da beleza têm feito as pessoas deixarem a cultura de lado, principalmente na Europa. É impressionante. A cultura se tornou superficial: você abre a internet e já está disponível a última música de um cantor específico. O acesso à cultura é fácil, mas é feito de uma forma tão superficial, tão promíscua, tão desnorteante que não te leva a lugar algum. Isso é perigosíssimo, porque dá para ver que você não tem tempo para si mesmo, para se aperfeiçoar em um assunto. Saber mais, devorar cultura. Ninguém mais tem tempo para isso.
R7 Pop:  Atualmente, como você se renova para conquistar um público mais jovem?
Mafalda Minnozzi: Eu amo a cena independente e tento me envolver nela o tempo todo. Tudo o que eu faço é com essa galera: meus vídeos são feitos com produtores independentes, é sempre um monte de jovem com uma câmera na mão dizendo: “Vai, vamos lá, vamos gravar, vamos fazer”. Por isso amo São Paulo, aqui é uma sociedade de garotos jovens. Mas para me renovar, deixo de focar nos projetos que já realizei. Os fiz com todo o amor e carinho, mas acabou. Não ligo para a fama: tem gente que dorme com a minha foto na cabeceira, e tem outros que passam por mim e não me reconhecem. Aliás, talvez nem me conheçam.
R7 Pop: Você acha que, hoje em dia, os jovens dão a mesma importância à música como davam nos anos 1960?
Mafalda Minnozzi: Sim. O jovem é incrível. O problema é a falta de tempo, porque eles normalmente vivem em um mundo tão competitivo que não têm tempo de parar e curtir o que realmente os faz bem. No momento em que o jovem decide sair do roteiro – que é a faculdade, o vestibular, a parada, a balada, a droga, o culto às tendências —, consegue se entregar à música, mergulha em algo que os faz bem. Mesmo que esse algo vá contra os princípios da família. Ele abandona a família pela própria felicidade. Pode demorar, mas o resultado dessa quebra é extraordinário.
R7 Pop: Na sua juventude, você já fez alguma besteira por impulso?
Mafalda Minnozzi: Nossa, muitas. Fiz várias besteiras, tipo beber todas, cair no chão e nem conseguir levantar o braço; correr como uma doida para ouvir o som do motor: corri de moto, corri de carro, em lugares perigosos. Disso, me arrependo muito, porque não arrisquei apenas a minha vida como a vida de terceiros – e essa sabedoria me chegou com a idade. Mas o resto, estou feliz de ter feito, porque sempre fui contra os padrões: eu achava que tinha que procurar a minha liberdade, já que não a tinha dentro de casa. Casei com um homem que sempre respeitou muito isso. Minha vida foi cheia de besteiras, mas sempre muito digna: nunca trepei se eu não queria trepar, por exemplo. Atualmente, meu maior erro é fazer birra quando estou brava com meu marido.
R7 Pop: Como você vê a mulher no mercado da música?
Mafalda Minnozzi: Até hoje, muitas mulheres só chegam a algum lugar na música se um homem estiver por trás delas. Já dizia Madonna: na arte, a mulher só é considerada boa quando instrumentalizada pelo homem: sendo violentada, usada, manipulada, amada, paga por um homem. Aí funciona. Mas quando você começa a envelhecer, isso tudo muda. Infelizmente, o espaço no mundo da música se fecha para mulheres mais velhas. Para mim, as musicistas mais incríveis são as menos preocupadas com o padrão de beleza: Edith Piaff, Elis Regina... O que é a beleza perto do conteúdo? Nada. O que vale é a paixão. A paixão da música, e é isso que faz uma mulher se enquadrar. A música tem a função de limpar as mágoas, fazer você entender que outras pessoas já passaram por algo que você está passando. E eu sou apenas uma ferramenta disso.
R7 Pop: Quais cantores mais te influenciaram no início da carreira?
Mafalda Minnozzi: Edith Piaff, Caterina Valente, Ornella Vanoni, Lucio Dalla, Frank Sinatra, Billie Holiday, Barbra Streisand, Nina Simone, Annie Lennox, Tina Turner…. Muitos!
R7 Pop: Há algum sonho que você ainda não realizou?
Mafalda Minnozzi: Cantar. Todos os dias. O palco, seja lá qual ele for, é um milagre. Por isso, sempre que consigo cantar realizo um grande sonho. Além disso, tenho o sonho de que o trabalho dos músicos seja realmente valorizado. Ser cantor só para dar autógrafo não é ser cantor: precisa de preparo e talento. Ser músico está no sangue.
R7 Pop: Você continua compondo?
Mafalda Minnozzi: Muito pouco, porque me envergonho perto das grandes obras — como as de Tom Jobim e Lucio Dalla. Há músicas que eu gravo, de outros compositores, cujas poesias são tão geniais, primorosas e pertinentes, que eu exerço com prazer a minha função de intérprete. O dia-a-dia de compor virou, para mim, um belíssimo exercício que continuo fazendo. Mas sempre me comparo e vejo que há pessoas mais capazes que eu na hora de compor. É claro que há também os mais capazes que eu na hora de cantar, mas em relação a isso eu entendo o meu valor: cantar é fruto de dores e alegrias para mim. No Brasil, há intérpretes geniais como Maria Gadu e Maria Rita que, como Cássia Eller, souberam pegar músicas estrangeiras e fazer delas algo contemporâneo que pode ser consumido por pessoas de qualquer idade.
R7 Pop: Quais são suas principais frustrações na vida?
Mafalda Minnozzi: Além da perda por causa do terremoto, há os abortos que eu já tive. Tive gestações malsucedidas. Geralmente, eu e meu marido não tentávamos, mas sempre que eu engravidava era uma alegria. O problema é que os bebês não se desenvolviam. Parece que a minha vida é toda assim: de coisas que quase acontecem, de sucessos que nunca chegam, conquistas que se afastam de mim. Minha vida é isso, e eu preciso me acostumar. Na realidade, há muita gente que me apoia, me ama, segue meu trabalho. Como eu posso falar que não tenho nada? Tenho a chance de continuar cantando. Sou uma guerreira, tenho personalidade forte.
R7 Pop: Até quando você pretende ficar por aqui?
Mafalda Minnozzi: Mais um pouquinho, até o começo do ano que vem. Esse país é 360 graus na minha vida: ele me escolheu e depois eu o escolhi. Escolhi pela humanidade. Eu chego agora de uma turnê na Europa onde passei por Portugal, Alemanha, Itália e Suíça. Mas em nenhum lugar encontrei o que encontro aqui: o calor humano. Esse papo gostoso, essa informalidade, esse lado humano. Essa coisa de você não precisar se importar com horários e vestimentas. Agora, infelizmente eu não consegui tocar a minha carreira apenas aqui – eu teria amado. Mas tenho migrado para outros estilos como jazz, swing, e até bossa-nova em língua estrangeira. Vou aonde o povo está.
R7 Pop: Qual conselho você daria às novas gerações de músicos?
Mafalda Minnozzi: Se preparar e não pensar que tocar é algo ligado à fama. É para a fome. É saber que é um privilegio ter uma voz de dentro que te chama para a arte, saber que é sacrifício, luta, preparo, compartilhamento, agregação, e não algo individualista ou egoísta. Se preparem e não tenham medo de confrontar quem duvida do talento de vocês. Acreditem muito no que vocês fazem: não deixem que pessoas os desmotivem, corram atrás dos seus sonhos. Sejam fortes, porque às vezes, na intenção de popularizar o produto, vocês os vendem por um preço tão barato que arranca a essência da sua música. Levem essa essência até a morte e lembrem-se: ser artista é tristeza e não alegria.

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